Data da postagem: Dec 20, 2017
Tempo de leitura: 8 minutos

Entre umas hackinages e outras e as idas e vindas de uma vida ordinária, costumo pesquisar, ler e pensar sobre a razão da existência, do porquê se faz as coisas que fazemos e porque continuamos fazendo.

Graças a essa “mania” que já tive muitas certezas, mudei praticamente todas elas e hoje em dia continuo pensando e mudando e aprendendo que sei cada vez menos e que quanto mais certeza eu tinha, menos sabia.

Welcome to philosophy. Everything you know is wrong and so is everything everyone else knows. Basically the human species are a bunch of stupid idiots.

— Existential Comics (@existentialcoms) 10 de dezembro de 2017

Vagando pelas webs, encontrei, não lembro como, um link sobre uma carta escrita por Hunter S. Thompson, um dos meus escritores preferidos, para um amigo. Ele escreveu essa carta como resposta após um pedido de conselho. Pretendia fazer uma tradução livre da versão que encontrei em inglês, mas sou preguiçoso demais para refazer o trabalho que alguém já fez quando transcreveu a carta direto de um livro contendo correspondências interessantes de seres famosos.

E essa carta traz um assunto que é uma das coisas que mais penso durante os momentos que meu cerébro entra em modo de hibernação: ter um propósito.

A visão do Thompson é bem interessante e se destaca por não ser mais uma daquelas merdas de auto-ajuda que todo mundo tá cansado de ler. Não estou dizendo que aquelas merdas estejam erradas ou certas, mas é bom ter uma noção diferente das coisas.

Sem mais viagens, segue a carta:

“22 de abril de 1958

Perry Street, 57

Nova York, NY

Querido Hume,

Você me pede um conselho: ah, que coisa mais humana e perigosa! Dar conselho a um homem que pergunta o que se fazer com a vida implica em algo muito parecido com egomania. Só um babaca teria a pretensão de orientar alguém para esse grande objetivo – de apontar com dedo trêmulo na direção correta.

Não sou bobo, mas respeito a sinceridade com que você me pede conselho. Mas eu lhe peço que, ao ler o que lhe digo, tenha em mente que todo conselho é produto de quem o dá. O que é verdade para um pode ser um desastre para outro. Eu não vejo a vida pelos seus olhos, nem você a vê pelos meus. Se eu tentasse lhe dar algum conselho específico, seria algo como um cego guiando outro.

“Ser ou não ser: eis a questão: seria mais nobre sofrer os golpes e os dardos de um destino adverso ou tomar das armas contra um mar de problemas…” (Shakespeare)

E essa é realmente a questão: boiar ao sabor da corrente ou nadar para alcançar um objetivo? Essa é uma escolha que, consciente ou inconscientemente, todos nós temos de fazer alguma vez na vida. Pouca gente entende isso. Pense em qualquer decisão que você tenha tomado e que teve alguma influência no seu futuro: posso estar enganado, mas aposto que só pode ter sido uma escolha, ainda que indireta, entre as duas alternativas que mencionei: boiar ou nadar.

Mas por que não boiar, se você não tem objetivo nenhum? Essa é outra questão. É inquestionavelmente melhor boiar com prazer que nadar na incerteza. Mas então como é que se estabelece um objetivo? Não um castelo nas nuvens, mas uma coisa real, tangível. Como ter certeza de que não se está correndo atrás da “grande montanha de açúcar”, do sedutor e doce objetivo com pouco sabor e nenhuma consistência? A resposta – e, em certo sentido, a tragédia da vida – é que tentamos entender o objetivo e não o indivíduo. Estabelecemos um objetivo que exige de nós determinadas coisas: e nós fazemos essas coisas. Nós nos adequamos às exigências de um conceito que NÃO PODE ser válido. Digamos que, quando era menino, você queria ser bombeiro. Acho que não estou muito errado em dizer que você não quer mais ser bombeiro. Por quê? Porque sua perspectiva mudou. Não foi o bombeiro que mudou, foi você. Cada pessoa é a soma total das próprias reações às várias experiências. Na medida em que suas experiências se diversificam e se multiplicam, você se torna outro homem, e, portanto, sua perspectiva muda. É sempre assim. Toda reação é um processo de aprendizagem; toda experiência significativa altera sua perspectiva. Portanto, não seria absurdo adequar nossa vida às exigências de um objetivo que a cada dia vemos de outro ângulo? O que mais poderíamos esperar, além de uma neurose galopante?

A resposta não tem a ver com objetivos, ao menos com objetivos tangíveis. Eu precisaria de muito papel para desenvolver esse tema. Só Deus sabe quantos livros foram escritos sobre “o significado do homem” e esse tipo de coisa, e só deus sabe quanta gente refletiu sobre isso. (“Só deus sabe” é apenas um modo de falar.) Não teria muito sentido eu tentar lhe transmitir isso em poucas palavras, porque sou o primeiro a reconhecer minha absoluta incompetência para reduzir o significado da vida a um ou dois parágrafos. Quero distância da palavra “existencialismo”, mas você deve tê-la em mente como uma espécie de chave. Você também poderia ler uma coisa chamada O ser e o nada, de Jean-Paul Sartre, e uma coisinha chamada Existencialismo: De Dostoiévski a Sartre. São meras sugestões. Se você está realmente satisfeito com o que é e com o que faz, nem chegue perto desses livros. (Não vá procurar sarna pra se coçar.) Mas voltando à resposta. Como eu estava dizendo, botar fé em objetivos tangíveis me parece, na melhor das hipóteses, insensato. Não nos esforçamos para ser bombeiro, não nos esforçamos para ser banqueiro, policial ou médico. NOS ESFORÇAMOS PARA SERMOS NÓS MESMOS.

Não me entenda mal. Não estou dizendo que não podemos ser bombeiro, banqueiro ou médico – mas que devemos adequar o objetivo ao indivíduo, e não o indivíduo ao objetivo. Em cada um de nós, a hereditariedade e o meio se uniram para produzir uma criatura com determinadas aptidões e vontades – e com enorme necessidade de DAR SENTIDO à própria vida. É preciso SER alguém; é preciso ter importância.

Acho que a fórmula é mais ou menos assim: cada indivíduo deve escolher um caminho que lhe permita usar sua CAPACIDADE com a máxima eficiência para realizar seus DESEJOS. Com isso, ele satisfaz uma necessidade (dá identidade a si mesmo, atuando de determinada maneira para alcançar determinado objetivo), evita frustrar seu potencial (escolhendo um caminho que não limita seu desenvolvimento) e evita o terror de ver seu objetivo murchar ou perder o encanto à medida que se aproxima (em vez de se curvar às exigências do que procura, ele adequou seu objetivo às próprias aptidões e aos próprios desejos).

Em suma, não dedicou a vida a alcançar um objetivo predefinido, mas escolheu um estilo de vida do qual SABE que vai gostar. O objetivo é absolutamente secundário: o que importa é a vida que se leva até chegar ao objetivo. É até ridículo dizer que cada um TEM de viver do modo como escolheu; deixar que os próprios objetivos sejam definidos por outra pessoa é abrir mão de uma das coisas mais importantes da vida – o supremo ato de vontade que faz de um homem um indivíduo.

Suponhamos que você tenha de escolher entre oito caminhos (todos predefinidos, é claro). E suponhamos que você não veja sentido em nenhum dos oito. ENTÃO – e aqui está a essência de tudo o que eu falei – você TEM DE ENCONTRAR UM NONO CAMINHO. Naturalmente, não é tão fácil quanto parece. Você levou uma vida relativamente medíocre, uma vida mais vertical que horizontal. Não é difícil entender por que se sente desse jeito. Mas quem posterga as próprias escolhas inevitavelmente acaba deixando que as circunstâncias decidam por ele.

Portanto, se você atualmente se encontra entre os desencantados, só lhe resta aceitar as coisas como elas são ou procurar algo diferente. Mas não procure objetivos: procure estilo de vida. Decida como você quer viver DA FORMA que escolheu. Mas você diz: “Eu não sei para que lado olhar; eu não sei o que devo procurar”.

E essa é a questão. Vale a pena abrir mão do que eu tenho para ir atrás de algo melhor? Eu não sei – vale? Só você pode tomar essa decisão. Mas a mera DECISÃO DE PROCURAR já é meio caminho andado para chegar à escolha.

Se eu não parar por aqui, vou acabar escrevendo um livro. Espero que isso não esteja tão confuso como parece à primeira vista. Tenha sempre em mente que essa é a MINHA MANEIRA de ver as coisas. Acho que é uma maneira bastante razoável, mas talvez você não ache. Cada um de nós tem de criar o próprio credo – esse é o meu.

Se alguma parte não faz sentido, diga-me, por favor. Não estou querendo mandar você procurar Valhala; só estou dizendo que você não tem de aceitar as escolhas que a vida lhe oferece. E mais – ninguém é OBRIGADO a passar o resto da vida fazendo o que não quer. Mas, repito, se é isso que você vai acabar fazendo, trate de convencer a si mesmo de que TINHA de ser assim. Não vai lhe faltar companhia. E é só isso por ora. Até receber notícias suas, continuo sendo seu amigo…

Hunter”

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